Por Milena Wanderley.
A potência do pensamento, a coisa mesma, o fenômeno que acontece no encontro quando todo potencial que a palavra carrega atravessa o outro e o compartilhar se fenomenaliza em aprendizado, tudo isso num espaço-tempo que se transforma e nos pede cada vez mais a nossa disposição para aprender, criar e ressignificar as nossas relações.
Toda atividade humana é feita em um ambiente de linguagem. Ela é o que nos ancora na capacidade de mantermos nossas potências criadoras em movimento, é dominando, usando e entendendo nossas faculdades linguísticas que nos apropriamos do que somos para elaborar o que podemos transformar em nós. Garantir consciência nesse espaço-tempo para que nos entendamos como sujeitos nesse processo de transformação é fundamental para que possamos construir novos caminhos, caminhos que atualizem o micro sistema nosso de cada dia a fim de que possamos, coletivamente, transformar o macro sistema que já não atende mais às necessidades básicas humanas há muito tempo.
Pois bem, é diante da necessidade de nos firmarmos no que potencialmente somos, nesse tempo, que as formas fechadas da burocracia que atravessa os contextos de ensino-aprendizado das instituições escolares têm sido testadas. No contexto da transformação e despertar em massa de 2020, há algo que grita, que salta aos olhos: nosso sistema de educação precisa ser revisto e ressignificado para que, de fato, alcancemos o que deve ser fundamental para o crescimento de um sujeito que se aproprie de suas potencialidades e, consciente delas, desenvolva-se coletivamente. Educação se trata disso, de ação consciente em que o compartilhar se fenomenaliza em aprendizado quando os sujeitos se apropriam do conhecimento e o transforma em ação. Foi sobre isso que o mestre Paulo Freire falou quando nos fez refletir sobre o quanto de nossa fala está aliada a nossa prática ou não e sobre as consequências desses gestos na construção de um contexto de educação para a transformação.
Não há dúvidas de que precisamos de transformação. Isso já estava claro, mas pouco se fez desde o golpe de 2016 para continuarmos a pensar como transformaríamos toda teoria que envolve a prática docente em ação e essa estagnação nos custou e ainda custará muito caro. Em tempo: essa estagnação da qual falo está relacionada ao contexto político que atravessa a ação docente. Sem o mínimo de dignidade e autonomia para desenvolver o seu trabalho, o professor não caminha e a consequência disso é uma sociedade em que o sujeito não desenvolve suas potencialidades de forma plena e ancorada em valores voltados para a coletividade.
Então reparemos o contexto: o sistema educacional estava passando por um processo de transformação democrática que estava levando em consideração, inclusive, a manutenção de condições dignas para que o docente desenvolvesse seu potencial na transformação desse sistema e democratização dos acessos a longo prazo. Todos os gestos, todas a políticas afirmativas de investimento na educação e democratização dos acessos foram fraturados junto com a democracia em 31 de agosto de 2016 quando a presidenta Dilma Rousseff sofreu um impeachment orquestrado por políticos que hoje se encontram condenados por crimes de corrupção. Os fatos estão postos e, como diz minha mãe, contra fatos não há argumento. E ela nem precisou ler Luiz Costa Lima (2006) para chegar a essa conclusão. Essa é uma daquelas que a gente chega quando observa a realidade com consciência e se entende como sujeito nela.
A Democracia foi sequestrada e as instituições que deveriam mantê-la saudável ajudaram nesse processo. São as mesmas instituições que hoje, em pleno 2020 atravessado por uma pandemia e uma crise econômica sem precedentes, lamentam o estado calamitoso em que nos encontramos. Essas instituições viram tarde demais o que já havíamos apontado quando essa fratura ganhou proporções abissais nas eleições de 2018.
2020 veio para mostrar o quanto estávamos fracassando enquanto humanidade. É um portal no espaço-tempo que impele o indivíduo a se repensar diante das escolhas que fez. E quem não está nesse processo de reflexão está sendo engolido pelas próprias prisões que construiu para si. Ser consciente desse processo, nesse tempo, é entender que sim, tudo depende de como nos comportamos diante da necessidade de olharmos para nós, para o outro, e para o fato com mais profundidade. É entender que a coisa mesma se faz aqui no momento que essas palavras são lidas ou escutadas, e munidos delas, de suas significações nesse agora, nós as tornemos fenômenos dentro de nós e depois fora através de nossas ações. É isso que significa transformar o conhecimento em ação. E é esse o princípio de toda reflexão que precisamos fazer diante dos sistemas educacionais do nosso país. Nós estamos, enquanto sociedade, entendendo que a escola é o espaço da coisa mesma, o espaço da interação mediada por um docente que precisa ser pleno de si, de sua consciência questionadora que transforma o conhecimento em ação? Há autonomia nesse processo? Há diálogo, compreensão e entendimento do que precisamos construir agora com nossas crianças e adolescentes? O que nos é essencial para que caminhemos plenos de toda nossa potência criadora? Estamos construindo esse espaço nesse tempo? Houve tempo?
Essas são algumas questões que podem nos nortear na construção de uma consciência mais profunda e potencializadora no que se refere às transformações que precisam ser feitas no sistema. Olhar para elas é fundamental para que construamos, coletivamente, um caminho de autonomia, transformação e aproveitamento de nossa potencialidade criadora.