T. Moraes
O sol desperta e descortina mais uma manhã. Ele anuncia um momento rotineiro que há seis meses não se repetia, estava estacionado em muitas vidas. O ponteiro do relógio corre, caça as horas e enfim…é hora de, mesmo com o coração e a razão de mãos dadas e totalmente alheios a decretos opressores e irresponsáveis, retomar. Recomeçar…Recomeço traz esperança. Recomeço traz expectativa. Recomeço traz desejo de uma nova história ser escrita com outras palavras, outras figuras de linguagem, outros parágrafos, outros desfechos… O de hoje trouxe medo. O de hoje me furtou alegria, satisfação e sorriso. Pela primeira vez fez meu coração disparar apavorado quando empurrei aquele portão, envolta numa atmosfera fria e silenciosa, deixando os gritos, as falas altas, a correria, os “bom-dias” e os abraços dos reencontros guardados em casa, aliás…onde todos nós deveríamos estar. A primeira coisa que meus olhos alcançaram quando o grande portão azul se abriu foi uma guarita, uma barricada humana onde o gentil bom dia foi dado e a única coisa que chegava mais perto de quem entrava era um aparelhinho que torcia como torcedor em final de campeonato para que nosso corpo estivesse frio, como meu coração estava diante de tudo aquilo. Mais adiante ouvi alguns gritos tímidos que chamavam minha atenção em busca de um aceno, quando o que queriam (e eu também!) era um abraço bem apertado, um sorriso sem cobertor, sem mordaça. Vi nossa sala… um dos locais mais divertidos da escola. O local de preparação, de planejamento, mas também de desabafos, de carinho, de união e de angústias. Mas antes de adentrar naquele tão meu espaço, era preciso enluvar as mãos com a substância invisível, que há seis meses tornou-se mais uma camada de nossa pele e que repousava num grande totem branco, cheio de propaganda da secretaria de educação. Ao entrar na nossa sala, senti-me sem braços, amordaçada e só foi possível murmurar um bom dia abafado diante da cena de “cada um no seu quadrado”. O que vi parecia pinos humanos demarcando terrenos a distâncias regulamentadas. Olhares assustados que tentavam fazer a função dos lábios: sorrir! Logo veio alguém trazendo nossa armadura. Uma tela transparente que cada um tratou de encharcar de álcool e ajustar na cabeça, como um soldado faz com seu capacete quando vai à guerra. O silêncio foi quebrado pelo barulho do sinal que ordenava, estridentemente, que os soldados do saber fossem para seus pontos de batalha munidos de mais garrafinhas da atual substância vital. E lá fomos… As salas de aula estavam quase vazias. Um silêncio que tentava ser quebrado por minha voz sofrida, tentando vencer a barreira de toda aquela armadura. Sorrisos tampados, olhares assustados e cabecinhas cheias de dúvidas, de medos. Alguns dos que estavam lá , há seis meses estavam comigo e com os outros professores nas janelas virtuais, adentrando em nossas casas e tentando enfrentar tudo isso. Os outros não vieram. Não deram sinal de vida e se resguardavam em suas casas muitas vezes por decisões sensatas dos pais que, mesmo sem o nível de escolaridade de nossos governantes, possuem sabedoria e bom senso suficientes para priorizar a vida…Depois de três aulas, minha voz já estava indo. Minha garganta suplicava por uma pausa que só durou vinte minutos. Tempo para encharcá-la com água e tentar diluir o efeito forte e os danos que o uso constante do álcool naquele curto período já causava. Minhas costas também já estavam bastante doloridas, fruto quem sabe das muitas horas sentada diante do computador nas aulas virtuais das duas redes, porque professor nesse país tem que se desdobrar. Os outros se queixavam da mesma situação desumana. Não há condições… é cruel nos submeter a isso. Aguentei mais três aulas. Mais três encontros em salas partidas com alunos apáticos que estavam ali por medo de reprovar, já que muitos não tinham internet em casa ou um aparelho celular que os possibilitasse de acompanhar as aulas remotas desde o início. O velho medo de serem deixados para trás devido á desigualdade social tão presente em nosso meio e infelizmente, muitas vezes tão ignorada. É uma segregação absurda que até na educação mostra sua face cruel. No final me senti destruída emocional e fisicamente. E pela primeira vez a vontade de sair logo daquele ambiente tão meu, repleto de tantas histórias de crescimento e superação pessoal e profissional, era visível. A máscara escondia parte do meu rosto, mas meus olhos garoavam o tempo todo. Que tristeza, meus amigos! Definitivamente a escola não é o local para estarmos nesse momento, nessa situação. Meu Deus, como senti falta dos sorrisos lindos dos meus alunos e dos abraços de urso que tanto me davam! Estamos esgotados fisicamente, psicologicamente. Somos responsáveis por ajudar os jovens a caminhar, a ver o mundo com outros olhos, a olhar humanamente, a ser agentes de suas histórias e vozes ativas nessa sociedade. Querem nos dar o posto de transmissores desse vírus tão cruel, seja para nossos alunos ou para nossa família. Escola não é lugar de medo. E hoje eu vi medo nos olhares. Eu não consigo dar aulas com medo…É triste demais um aluno de terceiro ano te perguntar :”- Professora, por que logo conosco? Esse ano era nosso ano de formatura, de viagem, Enem…por quê?” e a resposta ficar presa nas reticências… no silêncio. O medo só é vencido pela revolta de a busca por números, índices e metas superar a importância da vida. A educação está ficando desumana demais devido a essa insana busca de uma escola superar a outra, uma regional a outra, um Estado o outro às custas de tudo. O que vale mais é aparecer nas manchetes como destaque (muitas vezes repleto de maquiagem nos bastidores), mesmo que para isso seja preciso submeter o professor a condições extremamente desumanas. Quando me deparo com as cobranças, muitas vezes sem fundamentos e com propósitos meramente vinculados ao alcance das metas e que se destinam ao que querem que o aluno aprenda, rodopia em minha mente a frase do filósofo Confúcio: – “ Aprender sem refletir é desperdiçar a energia!” Quanta energia não querem que nossos alunos desperdicem… e também quanta energia, quanta vontade e quanto amor pela educação não estão desperdiçando de nós , professores, quando nos tratam como máquinas ou ainda como meros prestadores de serviços educacionais, não é mesmo?