Eu era nublada, tingida de Carmim.
Toda parda de índio, negro e branco. Tudo misturado, tudo umacoisasóeu.
Eu, na fila do pão, era o seu zé da venda “uma latinha e dez de charque”.
Eu, no jogo do bicho, era seriema, sabiá, gavião, caranguejo, pitu, siri, unha-de-véio, sururu, marisco de pegar com mão.
Eu, na fila do INSS, era dona maria mãe de seis filho, calejada, doméstica, pele fendida de sol.
“Quem és tu, senhora, vestida de azul?”
Eu sou prece, meu filho. Sou a mão estendida para dor do mundo. Sou o que movimenta as marés nos corações dos homens. Sou ampla, coroa de sol, mas miúda, tão mínima que ainda perguntas quem eu sou. Eu sou a voz, meu filho. Sou o que te sopra por dentro e serena as tuas tempestades. Eu, toda, estou em tudo espalhada, esgarçada na rudeza de todo dia. Tu me procuras hoje, mas eu sou feita de ontens.
Fratura teu peito, menino. Está no teu avesso o meu rosto. E não te espantes se, diante de mim, veres a ti mesmo, senhora, vestido de azul. É que quem me procura só vai me encontrar assim líquida, prismática. De sol e de sal.
Milena Wanderley