Orocó, sertão pernambucano
em algum momento de 1997.
O bicho berrava e saltava. Enquanto o garoto puxava a corda com dificuldade em direção ao umbuzeiro, o pai segurava os chifres do bode para que não atacasse. Depois de várias voltas da corda em torno da árvore e de dois ou três nós, o animal estava preso. O garoto pegou a tora de madeira jogada no chão, entregou nas mãos do pai e se afastou.
Na primeira pancada, o bode caiu desajeitado no chão, mas ainda se mexia. Na segunda, parou.
– Cadê a faca?
– Deve tá lá dentro.
– Deve tá lá dentro?
– Vou buscar, painho.
A cozinha estava tomada pelo cheiro do coentro e do alho. Fazendo um “4” com as pernas em frente ao fogão de lenha estava Carmen – ou Dona Carmen -, mexendo três panelas borbulhantes ao mesmo tempo.
– Mainha, cadê a peixeira?
– Tá na pia. Passe uma aguinha. Teu irmão tá onde?
– Vi Cícero não.
– Pois vá atrás do seu irmão. Veja se ele não tá agarrado com a cachorra de novo.
Dona Carmen havia acordado uma hora antes de todos para começar a cortar, cozinhar, fritar e temperar todas as comidas da festa. Depois de passar semanas conversando com o marido, ela finalmente tinha-o convencido a matar um bode e algumas galinhas pro aniversário dela. Seria a primeira vez que faria festa desde o nascimento de Ciço. Francisco já tinha idade pra cuidar do irmão caçula e ela merecia uma noite de descanso, dançando e rindo como antes de todos eles.
Francisco encontrou Cícero ajoelhado na terra, empilhando pedrinhas no bucho da cachorra prenha.
– Quando os filhote mexe, as pedra cai – falou Cícero quando ouviu o irmão chegar, sem tirar os olhos do animal.
– Mainha vai te dar uma pisa quando souber que tu tá perturbando Zazá.
– Vai nada, mentira sua. Mainha não bate em mim.
– Mas painho bate. Quer que eu conte pra ele?
Uma pedrinha rolou.
– Óia aí ó, eu falei!
– Bora, Ciço!
– Tu não manda em mim não. Vou entrar porque já terminei o exame.
Seu Zé Rosa colocou a lâmpada mais forte que tinha na frente da casa, e sempre havia um novo raio de luz em movimento vindo dos carros e motos que chegavam pra festa. O fogo estalava e crescia a cada gota de gordura do bode que pingava. A radiola velha, puxada de dentro de casa, cantava as histórias de vaqueiros, sanfoneiros e viajantes.
Cícero corria rindo pra lá e pra cá, às vezes das outras crianças, às vezes atrás delas. Dona Carmen entrava e saia com pratos e panelas da casa desde que os convidados começaram a chegar. Numa dessas, quase foi atropelada pela horda de crianças sorridentes.
– Fique de olho no seu irmão – falou para um Francisco que não sabia muito bem onde sentar e nem o que fazer.
– Eu sei, mainha.
Ela usava um vestido de quando era mais nova, branco com flores amarelas. Apertava seus braços e quadril, marcando os quilos a mais que o casamento lhe deu. Sempre que o vestia, reclamava. Ameaçava tirar, mas Francisco a convencia de que estava linda, e ela ficava. Poucos meses atrás ele havia completado a mesma idade que a mãe tinha quando conheceu seu pai, lembrou Francisco. Ele ainda não se sentia um homem, mas, na idade dele, sua mãe já era mulher. Seu pai, Zé Rosa, era filho único. Ficou por anos cuidando sozinho da propriedade depois que os pais morreram. Até que ele conheceu Carmen e se apaixonou. Ele, 37 anos, ela 13. Casaram rápido. A mãe se mudou pr’aquela casa e nunca mais saiu. Nasceu Francisco. Nasceu Cícero. Ambos naquela casa.
As coisas já foram piores naquela casa, naquela terra. As plantações já secaram, alguns animais tiveram que ir embora, seus pais já deixaram de comer pra que não faltasse comida nos pratos dele e do irmão. As coisas estavam melhores. Seu Zé Rosa conseguiu juntar um dinheiro trabalhando em outras fazendas, levou um cano até o São Francisco, puxou água pra propriedade e construiu um reservatório. As plantas nunca mais morreram nem os animais passaram fome. Talvez por isso seu pai tenha aceitado fazer a festa. As coisas estavam melhores naquela casa.
O barulho de várias motos chegando ao mesmo tempo superou o som da radiola. Todos viraram as cabeças para olhar. Seis homens desceram conversando. Amigos de Seu Zé Rosa, das fazendas onde ele trabalhou. Todos apertaram primeiro a mão do dono da casa e depois foram um a um dar os parabéns para Dona Carmen. De longe, Francisco observou o homem mais atarracado, de óculos fundo de garrafa, beijar a mão de sua mãe e falar algo baixo demais para que ele pudesse ouvir, mas a resposta foi ouvida por todos: uma alta gargalhada de Dona Carmen, cristalina e sincera. Todos que estavam por perto riram junto com ela, até o pai, que não era muito de sorrir.
Ninguém estava muito interessado com a hora que a festa deveria acabar. Dona Carmen havia parado de carregar panelas para lá e para cá. Conversava com amigas da cidade. Seu Zé Rosa bebia acompanhado dos colegas. Todos falavam muito alto e riam muito alto o tempo todo, menos o anfitrião, que mais bebia do que falava. As garrafas de cerveja e cachaça se acumulavam debaixo das mesas. Zazá já nem se interessava mais pelos ossos que jogavam pra ela. Ciço já estava na cama fazia tempo. A mãe o encontrou encolhido numa cadeira dormindo e o levou pra dentro, não sem antes ouvir seus protestos sonolentos pedindo pra ficar na festa.
Um copo se espatifou no chão.
Todos olharam a tempo de ver Seu Zé Rosa sendo contido enquanto apontava o dedo pra cara de um dos colegas das fazendas.
“Apois diga pro seu patrão que na minha terra ele não toca!”, trovejou o dono da casa. “Se ele quiser ele pode plantar essa porra no cu dele, aqui não!”.
Dona Carmen já estava puxando o braço do marido antes que ele terminasse a frase.
– O que é isso, Zé? O que é isso? Olhe pra mim!
– Seu marido ficou doido, Dona Carmen! Tá até jogando dinheiro fora! – gritou debochando o homem pra quem Seu Zé Rosa ergueu o dedo, um magrelo alto com uma boca enorme.
Zé partiu para cima dele novamente, e novamente foi contido. Ele cambaleava de raiva e álcool.
– Não fale com a minha mulher, seu merda! Seu merda! Fora daqui! Fora! Vão pra puta que pariu, seus merda!
O baixinho de óculos já ligava a moto. Permaneceu calado durante toda a discussão e foi embora sem falar nada. Olhando para baixo e também em silêncio partiram os homens que chegaram com ele. Seu Zé Rosa ainda tentou acertar um copo no grupo, mas Carmen segurou seu braço a tempo de impedí-lo e o copo caiu aos seus pés. Ela sentou o marido num banco, ajoelhou-se na sua frente e conversou calma com ele, olhando em seus olhos. Ninguém conseguiu ouvir o que falaram. Dona Carmen então caminhou com Seu Zé Rosa para dentro de casa.
Francisco assistiu a cena inteira sem se mexer. Estava sentado ao lado da radiola, na porta de casa. Quando o pai passou sustentado pela mãe, viu que ele chorava. Correu atrás. Chegou a tempo de ver Dona Carmen deitando-o na cama e voltando para fechar a porta.
– Vá ver se seu irmão acordou – falou a mãe antes de finalmente desaparecer dentro do quarto.
Quando Francisco voltou lá pra fora, os convidados já haviam ido embora. Os faróis do último carro desapareceram na curva da estrada. O garoto jogou os últimos restos de comida perto de onde Zazá dormia, deixou os pratos na pia que ficava atrás da casa, entrou e fechou as portas. Cícero não havia se mexido.
Francisco deitou-se pra dormir, mas passou um longo tempo virando na cama, ouvindo seus pais cochicharem algo no quarto ao lado, mas sem entender uma única palavra. Quando ele finalmente pegou no sono, eles ainda sussurravam.
A polícia havia encontrado a plantação e queimado tudo.
Naquela noite, Seu Zé Rosa falou sobre os canos e o reservatório, sobre a comida dos animais e dos filhos. Contou para a mulher sentada na cama ao seu lado sobre o campo de maconha no qual trabalhou nos últimos anos e meses. Sobre a jangada na qual embarcava todos os dias para chegar até a ilha. Contou sobre o baixinho de óculos e o alto sorridente. Haviam lhe conseguido o trabalho quando sua terra quase morreu.
Mas a polícia havia encontrado a plantação e queimado tudo.
Agora buscavam um novo lugar para plantar. As ilhas do São Francisco já não serviam mais. Os caras estavam de olho.
O patrão ofereceu dinheiro por sua roça. Um bom dinheiro.
Mas era sua terra, sua casa, sua família. Se eles queimassem a plantação novamente, queimariam muito mais do que pés de maconha.
“Não”, e mais tarde, antes de dormir e deixar o quarto em silêncio, “desculpa, mulher”.
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– Visse teu irmão?
Francisco acordou com a mãe sobre ele, respirando rápido e segurando seus ombros.
– Vi não, mainha.
Do lado de fora da casa, era possível ouvir seu pai gritando o nome do filho, em todas as direções. Dona Carmen saiu do quarto arrastando freneticamente as sandálias e Francisco foi atrás, descalço.
– Vou procurar perto da pedra! Olha na estrada de novo! – gritou Seu Zé Rosa para a esposa quando ela correu para fora da porta da cozinha.
Ele caminhou roça adentro e ela arrudiou a casa, ambos gritando “Ciço!”.
Francisco esperou em pé na porta. Não enxergava mais o pai, mas o ouvia. Os minutos se passaram cadenciados pelo nome do irmão, até que um grito diferente soou.
– Carmen! Carmen, aqui!
O garoto correu em busca da mãe. “Mainha, painho achou!”, mas não era necessário gritar, ela já tinha ouvido e vinha correndo na direção oposta. Entrou na roça guiada pela voz do marido. Francisco correu atrás, saltando de dor a cada pedra ou galho em que pisava.
Ciço alisava o bucho da cachorra.
– Não tão mais mexendo.
Onde ficava a cabeça de Zazá, agora havia uma mancha de sangue escuro e pedaços de ossos. Uma pedra pesada e lisa estava ao lado, coberta de vermelho. Dona Carmen agarrou Cícero nos braços e o levou embora. Os olhos muito abertos sobre os ombros da mãe fixados no cadáver do animal.
– Vá buscar a pá.
Francisco ouviu o que o pai disse mas não se mexeu. Não conseguiu. Foi necessário que Seu Zé Rosa repetisse berrando o pedido para que o menino virasse e andasse até a casa. Nos fundos a mãe já tirava as roupas de Ciço para lhe dar um banho. Ninguém falava. O grito do pai pedindo a pá foi a última coisa dita naquela terra por muitas horas.
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O tecido fino e branco sobre o copo foi retirado devagar. A água embaralhava as luzes laranjas das velas, agitando-se nas mãos trêmulas de Dona Carmen. São Francisco, Padre Cícero, Jesus e Nossa Senhora da Conceição estavam diante dela, mas não a olhavam nos olhos. As galinhas e passarinhos se agitavam lá fora. Em breve a madrugada encontraria seu fim e o sol chegaria. Francisco não chegou. Saiu de manhã para ir pegar lenha e não voltou.
A mulher falava, mais para si do que para os santos. Pedia esperança. Pedia compaixão. Pedia para que tivesse sido ela. Pedia demais.
A sala piscou. O farol cruzou o altar e sumiu. O barulho do motor da caminhonete cresceu. Carmen ergueu os joelhos do chão num salto e correu. O marido descia do veículo. Ela não precisou perguntar, a resposta estava nos olhos dele. Ele estava só. Não achou Francisco.
– Por que, Zé? Por que fizesse isso com a gente? – a voz tremia, mas ela não chorava.
– Com vocês? O que foi que eu fiz com vocês? Eu botei comida no prato de vocês, foi isso que eu fiz!
– Ele é meu menino… O que tão fazendo com meu menino? – chorou. – Onde ele tá, Zé? Onde tá meu menino?
Seu Zé Rosa bateu a porta da caminhonete com força o suficiente para fazê-la balançar. Passou bufando pela esposa com a espingarda na mão, cabeça abaixada, olhos no chão.
Crac.
Marido e mulher pararam instantaneamente de respirar, os pescoços giraram.
Crac.
Seu Zé Rosa segurou com mais força a arma.
Crac. Crac.
O menino caminhava com passos curtos, difíceis. Tombava para a frente e para trás, para um lado e para o outro. Chegou pelo outro lado da estrada, caminhou até a mãe e caiu. Dona Carmen jogou-se sobre o filho. Agarrou-o. Virou-o. O corpo de Francisco tremia, sua respiração era álcool.
– Mainha… Fui eu não… Eles… Eles…
– Shhhh! Eu sei, meu filho. Eu sei…
– Foram eles… – Francisco mal conseguia falar, e já era impossível manter os olhos abertos. – Eles perguntaram… Pra painho…
Seu Zé Rosa aproximou-se do filho. Olhou-o de cima, jogado na terra e bêbado. A espingarda balançava apontando para o chão.
– Perguntaram… Quanto ele quer…
Zé jogou a espingarda no banco do carona e ligou o carro. Os faróis iluminaram Francisco vomitando. A mãe lhe fazia cafuné. Desligou os faróis.
Deu ré na caminhonete e apontou o carro na direção de onde veio o filho. No escuro absoluto, mas fazendo um enorme barulho, partiu. Quando a nuvem de poeira abaixou, Dona Carmen levou seu filho para os fundos e lhe deu um banho.
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Família encontrada morta na zona rural de Orocó
A Polícia Civil de Orocó, coordenada pelo delegado de polícia Sérgio Marinho, já iniciou as investigações sobre o caso da família encontrada morta na tarde da última quinta-feira (16) em uma fazenda localizada na zona rural do município.
As vítimas foram identificadas como José Maria Joaquim de Freitas, de 51 anos, Carmen Oliveira de Freitas, de 27 anos, e os dois filhos do casal, de 6 e 13 anos. Segundo informações, as vítimas foram encontradas com ferimentos provocados por arma de fogo nos fundos da casa. O carro do pai, José Maria, também será periciado pois foram descobertas manchas de sangue em seu interior.
A hipótese da polícia até o momento é de que o crime tenha relação com o tráfico de drogas na região. Nenhum suspeito foi preso até o momento.
Pedro Lourenço