“Olha aqui, o manual”. Marina contou que pegou o calhamaço de papel, suspirou um cansaço já existente e começou a folhear o instrucional cujo título em letras brancas flutuava num rosa pastel, meio acinzentado. Ela sabia, morava naquele rosa, naquele pálido e estéril rosa.
Era 2019, mas poderia ser 1968. Ela tinha percebido o cinza constante, insistente, daquele início de ano. A humanidade inteira havia entrado numa máquina do tempo interna e retrocedido anos e anos. Eram os de privilégio ameaçado, ela disse. Nem tinham perdido ainda o status quo para entender o que havia por trás dos cenários de suas vidas tacanhas, nem tinham saído ainda de suas zonas de conforto e arquitetaram, em massa, o retrocesso dos retrocessos do início do milênio. O manual que Marina, apática, folheava naquele dia era um dos instrumentos para pôr na fogueira, novamente, as mulheres que sentiam demais.
Ela nascera no matriarcado. Sua mãe: professora primária, sua tia: pedagoga, sua outra tia: assistente social, sua irmã mais velha: sanitarista, sua prima: professora de história, seu pai: sindicalista, seu irmão: publicitário, Marina: “sonora, múltipla, argonauta”. Ela não era dali, não pertencia a esse mundo dos fazeres. Ela carregava a força das suas e era, internamente, todas elas, ela era o todo que o “fazer” não deixava “sentir”, como costuma dizer. E era o que lhe apertava ali enquanto folheava aquele manual: entre o estar e o ser havia surgido uma fratura abissal.
Recebera o livro das mãos de Rui, o Castro. Vivera com ele. Tinha entrado no esquema. “Ela é interessante… Uma esfinge, quase. Marina é meu puzzle que anda”, era o que ela dizia sobre ela aos convivas sempre que tinha oportunidade. Professor Castro achava bonito sua esposa dizer poesia nos jantares que dava na sua antiga sala de jantar vintage. Foram casados por doze anos até ali. Ele, especialista em engenharia de materiais, tinha conhecido Marina na universidade em que fez o mestrado. Ela, terminando a graduação de jornalismo, vivia de palavras. Era cheia delas antes de casar com ele. Castro, que fora educado para ter acesso aos bens culturais de seu país, entendia que a articulação de determinado vocabulário o tornava uma pessoa “diferenciada”. Era essa a palavra que ele usava para caracterizar uma pessoa que consumia arte: diferenciada. Marina tinha sido atraída pelo olhar mínimo que ele tinha sobre seu mundo e pela gentileza que lhe preenchia algumas lacunas. Saíram juntos do Rio de Janeiro e foram morar no interior de São Paulo onde Rui havia passado num concurso para professor de Universidade Estadual. Não demorou muito tempo para Marina se aperceber habitante daquele rosa. Mas aquele manual… Aquilo legitimava sua ausência de si.
Ela leu sobre a vida que levava naqueles capítulos ilustrados por figuras de mulheres com saias longas, saltos, cabelos loiros modelados, peles brancas, cinturas magras marcadas, camisas de botão, unhas vermelhas e sorrisos estáticos. Primeiro ela teve a impressão de ter visto aquilo em algum material da disciplina de História da Publicidade que cursou como eletiva quando na graduação, pesava ter certeza que era dali a referência que, espantosamente, tornava aquele material familiar. Mas, ao passo que corria os olhos pelas páginas, o seu estado de apatia ia sendo substituído por uma inquietação que já causava sudorese. Eram vinte páginas lidas apenas e um tsunami de vergonha alheia e de si mesma subia-lhe à face. Marina conta que correu para o espelho. Só conseguia ver aquela mulher do manual. Sua face pintada em papel de revista. O sorriso rosa-estático, os braços cobertos pelas mangas brancas, largas, abotoaduras nos pulsos e na garganta. “Onde eu estive todo esse tempo?”. Foi cambaleante até o seu quarto, entrou no closet: lado esquerdo em branco, tons de rosa, lilases. Lado direito: azuis, céus, nuvens, vagas. Lembrou-se do mar, do de dentro de si. “O amor é azul… Azul-claro, azul-claro, azul-claro”. Despiu-se. Marina queria voltar para sua mãe que morava no azul. Pensava, naquele momento, não fazer sentido algum aquele rosa-pálido-acizentado. “Se fosse pra ser rosa, que fosse um rosa-carne, um rosa-circuladô-de-fulô, um rosa-orgasmo”. Ela sentia: o caminho de dentro de si estava para onde nasce o sol.
Marina vestiu as roupas de Rui. Não fez mala. Tomou a bolsa: dela pegou apenas dinheiro, documentos e cartões. Deixou as chaves de casa e um bilhete no aparador da sala:
Honney,
Fui viver no azul.
Marina.
Uma semana depois, o carro de Marina foi localizado em uma rua paralela ao mar em Santa Cruz Cabrália, na Bahia. Um caiçara da região disse ter visto uma mulher de azul entrar no mar. Mas não como se entra habitualmente, a nado, boiando, ou sendo arrastado pelas ondas. A mulher parecia ter pés de âncora. Os passos eram dados como se ela tivesse descendo uma escada. O pescador contou essa história fazendo o sinal da cruz. Outro disse que viu só a réstia das costas e cabelos dela sendo encobertos pela última onda vista antes dela desaparecer. Esse disse que esfregou os olhos e quando abriu novamente ela já não estava mais lá; “Parecia até Iemanjá”. Não apareceu corpo compatível com suas características em todo litoral da Bahia. Castro procurou em todos os espaços possíveis e, não entendendo o como e o porquê do desaparecimento de Marina, encontrou ajuda terapêutica e reconstruiu sua vida fora do Brasil. Lá ele encontrou outra companheira rósea-pastel. Mas nunca pôde fazer o desmame da Mirtazapina.
Marina foi o assunto durante duas semanas. Seu nome e história desapareceram das redes sociais quando o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos anunciou o protocolo de intervenção e reeducação das mulheres do Brasil a fim de resguardar os valores familiares e combater a ideologia de gênero.
Contudo, contam os locais que, quatro anos depois do ocorrido esse mesmo caiçara viu, numa manhã, andando pela beira da praia, uma mulher vestida de azul muito parecida com a que ele tinha visto entrar no mar anos antes. Para tirar a dúvida, ele chamou-a pelo nome: “Marina”, ela olhou pra ele e sorriu. O pescador conta que em seus olhos resplandecia uma auréola azul quase branca que contrastava com a pupila negra. E mesmo com o coração gelado de pavor e totalmente captado pelos olhos profundamente claros dela, ele falou “Que bom que tá viva”. Ela acenou com a cabeça e continuou o seu caminho enquanto o pescador correu para o bar mais próximo. Ele precisava processar a informação. Foi assim que a cidade soube dela mais uma vez.
Ela, pertencida a si, tinha encontrado nos braços de sua mãe o mar de dentro. Quando Marina entrou nas águas salgadas daquela praia, há quatro anos, sua mãe a abraçava e foi no colo dela que Marina achou de si o que tinha perdido. A mãe cuidava de sua cabeça, enquanto o tempo lhe acalmava o coração e a ensinava outro modo de senti-lo. Marina agora era um oceano de palavras e por saber delas a potência, valorizava também o silêncio. Líquida e lúcida. Marina tornou-se o azul e anda pelas aldeias do país a contar a sua história e muitas outras que internalizou quando esteve com sua mãe.
Soube-se, depois, de muitas outras mulheres-d’água cujas peles nunca foram tocadas por fogo. Marina, Lúcia, Amaya, Francisca. Todas líquidas. As histórias delas são nossas, minha filha. Honremo-las.