Não se diz
Vou amar na segunda
Sentirei medo na quarta
Na quinta, sentirei saudade.
Afeto não se põe em agenda
Afeto não é de pegar
Comer
Servir
Cheirar
Embora tenha textura
Sabor
Forma
Odor
Afeto é tão múltiplo
Que às vezes
Nem na palavra cabe
Que dirá nas agendas
O de agora
O de ontem
O de amanhã
O que é
Foi
Será
É de dentro
E controle
Não há
Tá vendo aquela
vontade estrela
nas asas do passarinho?
Não?
E se eu disser:
amanhã, às nove horas,
da manhã
verei, absorta,
uma vontade estrela
nas asas do passarinho.
Eu verei?
Afeto não se põe em agenda.
Nem a existència.
Nem o poema.
Nem a vontade estrela
que se vê
na asa do passarinho.
Na agenda não cabe o poeta
cujo destino um anjo torto traçou
A ideia, o tempo, o espaço
O impulso, a embriaguês, o cansaço
Nada disso é quantificado
Não há espaço para o afeto nas agendas
Das corporações
Dos administradores
Das secretárias
Das funerárias
Dos consultórios
Talvez ele, o afeto,
até esteja perdido
na agenda/diário/lembrança
de uma adolescente de outrora
Mas nem nela cabia
o que sentia a menina
de treze anos
que com a morte dançou
a valsa sincopada
do abandono
Afeto não cabe na agenda
A menina que dançou tinha uma
E isso não a livrou da valsa
Que veio um dia sem avisar
Numa hora que não se sabe
Num tempo interno de lua
Numa maré alta
Em algum ponto
Do litoral do Recife.
Ela nunca esteve em agendas
Era feita inteira de afeto
E afeto não cabe na agenda.
Milena Wanderley, 05/10/2020.